quinta-feira, 13 de abril de 2006

Uma Breve Conversa com Luiz Roberto França de Mattos

Em 2002 tive um breve diálogo com o Luiz Mattos, filósofo calvinista falecido em 2004. Na época eu estava começando na filosofia reformada. Foi interessante ouvir seus comentários sobre Wolterstorff e a Teologia da Libertação. Ele me recomendou a leitura de sua dissertação de doutorado, sobre o tema (que eu não consegui obter ainda); no próximo encontro da Rede (em Julho deste ano) vamos discutir um pouco as idéias de Wolterstorff.


Caro professor Luiz Mattos;

Tudo bem? Não sei se você se lembra de mim. Meu nome é Guilherme Carvalho. Sou de BH, e assisti a uma aula sua em 2001. Meu Pai (Elildo Carvalho) foi seu aluno. Pois bem: estou escrevendo porque eu e alguns professores aqui de BH estamos iniciando um núcleo de estudos interdisciplinares de orientação kuyperiana. Gostaria de estar em contato com filósofos reformados e de receber alguma ajuda, se você não se importar, é claro. Começo com uma pergunta: é possível fazer alguma conexão entre a epistemologia de Plantinga e a filosofia de Dooyeweerd? A primeira pode ajudar a esclarecer a intuição das esferas modais kuyperianas-dooyeweerdianas? Agora um pedido: tem como eu conseguir uma cópia de sua dissertação de doutorado (sobre a teologia da libertação)? É que eu estou pensando sobre as conexões (e descontinuidades também) entre a missão integral eo neocalvinismo (a propósito: li seu artigo na Fides e consegui uma cópia do Wolterstorff). Como sou neocalvinista convicto, sinto que há uns desajustes. Aguardo ansiosamente sua ajuda. Prof. Guilherme Carvalho. Faculdade Evangélica de Teologia de BH

Caro Guilherme,

Obrigado por seu e-mail. Você levanta várias questões muito interessantes. Terei muito prazer em manter um diálogo com você sobre elas. Prometo lhe enviar uma resposta, ao menos para aquelas sobre asquais já pensei um pouco a respeito, na próxima semana. Amanhã, terei uma reunião de planejamento do ano acadêmico 2003 com todos os professores do CPPGAJ, durante todo o dia. Grato por seu interesse e compreensão.

Luiz Mattos-----Mensagem original-----De: Guilherme Carvalho. Enviada em: quarta-feira, 13 de novembro de 2002 16:57Para: Luiz Mattos. Assunto: Epistemologia Reformada

Caro Guilherme,

Uma vez mais obrigado por seu e-mail. Lamento minha demora em responder. Estive bastante atarefado nos últimos dias trabalhando no preparo do Processo Seletivo 2003, ao lado de outras responsabilidades, o que me impossibilitou de lhe escrever antes. Conto com sua compreensão.
NA verdade, embora tenha me esforçado não consegui me lembrar de você. Creio que tivemos um contato muito rápido. No entanto, lembro-me muito bem de seu pai, e de suas participações sempre muito positivas nos cursos que ensinei.

Parabéns pela iniciativa de iniciar um grupo de estudos interdisciplinares a partir de uma cosmovisão Kuyperiana. Como você já percebeu, Kuyper (e o neo-Calvinismo holandês) ainda é bastante desconhecido em nosso meio reformado aqui no Brasil. À sua semelhança, estou convencido de que a obra de Kuyper é de extrema importância para que desenvolvamos um Calvinismo que nos permita interagir responsável e apropriadamente com as diversas esferas de soberania identificadas por ele: Ciência, Arte, Estado, Economia, etc.

Quanto à sua pergunta acerca da potencial conexão entre os projetos de Dooyeweerd e Plantinga, faço as seguintes observações:

1. meu conhecimento de Dooyeweerd é limitado. Além de sua crítica a Van Til na obra Jerusalem and Athen Revisited, avaliei superficialmente apenas Roots of Western Culture. Entretanto, é evidente, como você observa em seu e-mail, e Wolterstorff reconhece em sua obra Until Justice and Peace Embrace, que o projeto de Dooyeweerd incorpora a noção Kuyperiana de Esferas de Soberania como uma realidade ontológica baseada na ordem da criação.

2. Em Roots of Western Culture, identifico os seguintes elementos da filosofia Dooyweerdiana pelos quais nutro apreciação:

a. Seu reconhecimento de que iniciar a investigação da realidade em qualquer dos vários campos do saber humano (Matemática, Ciências Naturais, Biologia, Psicologia, Lógica, História, Lingüística, Sociologia, Economia, Estética, Teoria Legal, Ética ou Ciência Moral), “sem a luz do verdadeiro conhecimento de Deus e de si mesmo” tenderá a gerar uma absolutização de um conhecimento específico e um conhecimento falso da realidade como um todo. A seguinte declaração de Dooyeweerd substancia este ponto [peço licença para citar o texto em inglês para não correr o risco desnecessário de problemas com a tradução] : “Whoever absolutizes one aspect of created reality cannot comprehend any aspect of the basis of its own inner character. He has a false view of reality. Although it is certainly possible that he may discover important moments of truth, he integrates these moments into a false view of the totality of reality.” [Dooyeweerd, Roots of Western Culture. Toronto: Wedge Publishing Foundation, 1979, p. 42. Desculpe-me a citação completa. É só para permitir a conferência do texto se você desejar]
b. Seu reconhecimento de que ainda que o incrédulo possua uma falsa perspectiva da totalidade da realidade, ele ainda possui glimpses [vislumbres] da verdade, ou nas palavras do próprio Dooyeweerd, “momentos de verdade.” Esta posição parece-me mais apropriada do que a perspectiva defendida por Van Til, em My Credo, onde ele parece rejeitar o acesso do incrédulo à verdade “whatsoever.” [Reconheço que minha análise da obra de Van Til é por demais simplificada neste e-mail]. Se você desejar maiores informações acerca do assunto, não restará alternativa senão fazer um curso comigo em Epistemologia Reformada quando o mesmo for oferecido.

3. Plantinga, em suas obra mais recente em Epistemologia, Warranted Christian Belief, não se preocupa em relacionar seu projeto com as esferas de soberania propostas por Kuyper/ Dooyeweerd. Seu projeto é, até onde o entendo, desenvolver uma apologética negativa, demonstrando a racionalidade da fé cristã, de forma a responder a potenciais questionamentos de incrédulos. Note, entretanto, que ele não se propõe ao desenvolvimento de uma filosofia racionalista, nem de uma apologética positiva. È convicção explícita de Plantinga que apenas a obra regeneradora do Espírito Santo pode levar à conversão e ao conhecimento de Deus. Não obstante, ele se dispõe a descrever racionalmente este processo, investigando a capacidade noética do ser humano antes e pós-queda, bem como os efeitos noéticos da ação do Espírito no homem regenerado.

4. A despeito de Warranted Christian Belief não fazer qualquer menção às esferas de soberania Kuyperianas, é possível identificar uma ênfase de Plantinga a elementos da estrutura da criação e aos efeitos da queda sobre os mesmos. Em outras palavras, não creio que Plantinga tivesse qualquer razão para rejeitar a perspectiva Kuyperiana.

Quanto à minha dissertação de doutorado, esclareço o seguinte:

1. A obra não é sobre a Teologia da Libertação. O título é “Uma Análise da Teologia e da Ética Social de Leonardo Boff.” O texto está em inglês. Há um exemplar na Biblioteca do Calvin, mas não creio que isso lhe será muito útil. Eu tenho original, mas você teria que aproveitar uma de suas vindas a São Paulo para verificar o que desejaria copiar. Num futuro não muito remoto, espero trabalhar na tradução e publicação da obra.

2. Não entendi exatamente o que você quis dizer em seu e-mail por “desajustes.” Os desajustes a que você se refere são entre a Teologia da Libertação e projeto neo-Calvinista? Entre minha interpretação de Wolterstorff e a intenção do autor em Until Justice and Peace Embrace? Entre a posição de Wolterstorff e a da Teologia da Libertação?

3. O que quer que você tenha em mente, é minha convicção que Wolterstorff, a despeito de ser um neo-Calvinista assumido, tentou se valer de alguns subsídios fornecidos pela Teologia da Libertação, tal como, a teoria da dependência por exemplo, promovendo um tipo de síntese entre neo-Calvinismo e TL. Não creio que ele tenha sido bem sucedido. Em minha dissertação, deixo isso claro, como você poderá observar, se vier a lê-la.

Espero que estas observações sejam úteis em seus estudos. Lamento uma vez mais minha demora em responder seu e-mail. Minha oração é que o Senhor continue a abençoá-lo em sua vida acadêmica e pessoal.

terça-feira, 11 de abril de 2006

Teologia Radicalmente Evangélica

Revirando meus papéis em busca de uma fatura desaparecida, encontrei o discurso de formatura que eu escrevi para meus alunos da FATE BH. Foi a minha última turma naquela faculdade; uma turma jóia. O discurso foi lido em 12 de Julho de 2005 pela minha esposa, e representa bem o que penso sobre o desafio de ser evangélico hoje, especialmente nos círculos pensantes.


Agradeço aos meus alunos pela escolha do meu nome como paraninfo da turma. Este prazer só não será completo devido à minha ausência necessária.

Estou certo de que essa escolha reflete o nosso relacionamento ao longo do curso. E como o nosso relacionamento sempre girou em torno de uma mensagem, que permeava nossas aulas e conversas de corredor, tenho certeza de que essa escolha reflete o impacto positivo dessa mensagem na turma.

E qual é essa mensagem? A mensagem a respeito da radicalidade do evangelho.

Os ouvintes podem se surpreender com essa declaração, por sua aparente banalidade. Afinal de contas, não é verdade que todos os cristãos afirmam a radicalidade do evangelho? Não é isso o pressuposto nos seminários evangélicos? Não é esse o tema dos púlpitos, dos livros e dos cânticos?

Infelizmente, não. A igreja evangélica vive uma grande crise de legitimidade e de fundamentação. Essa crise é bem conhecida entre aqueles cristãos mais informados. Na busca, em si legítima, por um impacto mais significativo na sociedade, os evangélicos tem se adaptado acriticamente a posições políticas, ideológicas e econômicas humanistas, e a níveis de moralidade inaceitáveis, do ponto de vista das Escrituras.

Um dos setores nos quais essa acomodação tem se apresentado de forma mais evidente é o da teologia evangélica. A reflexão sobre a fé e a práxis evangélica tem lutado desesperadamente por legitimidade e eficiência, no interesse sincero de contribuir para a missão da igreja.

Entretanto, por uma ingenuidade filosófica, muitos pensadores evangélicos vem renunciando à radicalidade do evangelho, submetendo-o a padrões de pensamento cuja raiz é patentemente pagã.

Permitam-me repetir o que eu disse em sala de aula inúmeras vezes: isso não é radicalmente evangélico.

Não é radicalmente evangélico tentar compreender o evangelho a partir da mente secular, pois "o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, nem pode entendê-las, pois elas se discernem espiritualmente". Não é radicalmente evangélico acreditar que nossa compreensão do evangelho é totalmente condicionada e fundada pelo nosso contexto de origem; pois, "se alguém não nascer de Novo, não pode ver o Reino de Deus". O efeito historicamente comprovado desse tipo de hermenêutica tem sido a secularização do cristianismo, e o comprometimento da verdade cristã. Como Francis Schaeffer disse tantas vezes, ao dar-se autonomia à natureza, ela "devora a graça". Ao conferir a autonomia aos processos de pensamento utilizados na teologia, a "razão natural" devora a "fé".

O que seria, então, "radicalmente evangélico"? Nada menos que reverter completamente essa situação. Radicalmente evangélico seria compreender a mente secular a partir do evangelho; seria acreditar e aplicar o evangelho como chave hermenêutica radical para destravar a realidade, ao invés de tentar ler o evangelho a partir de uma suposta "realidade do leitor".

Para muitos cristãos sinceros essa posição é vista como "fundamentalismo". Não é o momento, aqui, para discutirmos a propriedade desse rótulo. Quero, no entanto, desafiar os meus alunos a não se incomodarem com isso. O mínimo que um teólogo cristão precisa fazer é se submeter a tais injustiças com coragem. Se existe uma forma de seguir a Cristo com a mente, ela certamente envolve levar o "opróbrio de Cristo" - a vergonha de confiar no Senhor de todo o coração e não se estribar no próprio entendimento.

A partir deste desafio, poderemos reconhecer as amplas implicações de um pensamento radicalmente evangélico. E a práxis da Missão Integral será, agora, entendida no sentido mais pleno possível: a missão de constituir uma cultura cristã, expressando o poder redentivo do evangelho em todas as esferas da vida: na política, na arte, na ciência, na caridade, na educação - enfim, na totalidade da vida humana. Como o expressou Abraham Kuyper, em sua célebre declaração:

"Não há um só centímetro, em toda a extensão da vida humana, sobre o qual Cristo, o Senhor de todos, não clame: isto me pertence."

É a minha oração que isso se cumpra na vida e no ministério de cada um de vocês. Que o evangelho seja crido e domine radicalmente todas as áreas de suas vidas, de tal modo que, um dia, as pessoas digam a seu respeito: não há um único centímetro na vida dessas pessoas que não pertence a Cristo!

Amem, e que Deus os abençoe.

Pr. Guilherme Carvalho