domingo, 9 de julho de 2006

Convocação à batalha pelo Corpo de Moisés

Guilherme V. R. de Carvalho

Para meus Pais

“o arcanjo Miguel, quando contendia com o diabo, e disputava a respeito do corpo de Moisés”
Judas 9

Porque Satanás desejaria o corpo de Moisés?

Porque tomar aquele corpo envelhecido, cheio de memórias horrendas, de encontros maravilhosos com Deus? Porquê sujeitar-se a ser confundido com ele, repetir seus trejeitos e cheiros, imitar a sua voz? Pior; e se ele era mesmo gago? O que poderia fazer um diabo gago?

Pergunta óbvia. A mera pergunta induz a resposta: toma-se o corpo para se parecer. Há muitas formas de se parecer com alguém, mas qual seria melhor que tomar o seu corpo?

Desceu, pois, o arcanjo Miguel, para contender com o diabo e disputar o corpo do profeta. Também Deus queria aquele corpo, que era seu. Deus não queria só o espírito, mas também o corpo. É claro, Deus não queria apenas impedir que o diabo enganasse a outros por meio daquele corpo – engano possível apenas se não conhecêssemos nada além de Judas nove. Deus queria o que era seu. Mas também, o que era de Moisés; só o diabo quererá negar a identidade de Moisés com o seu corpo, e o ponto é inimaginavelmente importante, a ponto de conferir proporções cósmicas à batalha por ele.

Corpo é expressão temporal e material do ser; superfície na qual o interno se torna visível, o profundo na superfície, o símbolo de mim, que participa do que sou eu. Isso é o que o corpo deveria seria ser; para isso Deus criou o corpo. Mas a queda destruiu a sua finalidade, e colocou o eu contra o eu, o eu interno contra o eu externo. A leitura mais superficial de Romanos sete nos fará lembrar rapidamente a miséria de se achar fraturado, de querer e não querer ao mesmo tempo, de buscar a própria redenção por meio da auto-destruição.

O pecado separa barro e espírito, mata o sentido, afasta corpo de ser. Situação deveras miserável; eu separado de mim e, como se não bastasse, figuras infernais desejam alienar-me ainda mais de mim mesmo, tornar-me em dois e, então, em outro, para usar-me contra mim. O que será que Moisés pensou quando viu, de sua nuvem, o diabo lutando para apossar-se da sua superfície, para conectá-la com uma outra profundidade?

A luta entre Miguel e o diabo pelo corpo de Moisés lembra-me a luta pelo sentido, no campo da interpretação, e da própria teoria hermenêutica; ou melhor, a luta pela forma do sentido; ou a luta pela superfície do sentido que, não deveria mas, miseravelmente, é separada de seu coração, de sua fonte semântica profunda.

Ora, um calvinista, tipicamente, não se entregaria a este tipo de alegoria fantasiosa, inventando sentidos com as imagens bíblicas. Eu, especialmente, que por tantos anos defendi uma interpretação literal (embora não literalista) das Escrituras – que ironia. Mas antes que os amigos torçam seus narizes contra mim, quero desculpar-me de tão insólito uso do corpo de Judas, que não quero roubar, de forma alguma. Meu exercício de imaginação não terá a pretensão de significar o que Judas quis dizer, naturalmente. É claro que não estou fazendo exegese. Ao menos, não exegese bíblica.

Talvez, sim, exegese de um comportamento realmente diabólico, esse, de tentar roubar o corpo dos outros, ora. Isso, de fazer roubo semântico, é outra coisa. Ladrões de corpos, violadores de túmulos! Saqueadores criminosos esses hermeneutas que querem usar a superfície dos outros para ganhar o amor dos homens.

Diabolicamente enfiando-se nos braços, nos olhos e na língua que um dia foi de Moisés, e do Espírito de Deus – de ambos – para dizer algo que não é mais a mentira absoluta, que seria nada (em verdade, que não é), nem a verdade, que disse Moisés, mas para dizer uma síntese perniciosa que tem, corpo de verdade, mas espírito de mentira. É a verdade vazia que tem o cheiro, as rugas, o pêlo e o timbre da verdade, mas que é realmente outra coisa. E é difícil mostrar a mentira; afinal, se parece tanto com a verdade!

Um teólogo "diabólico" fará qualquer coisa para ser amado como Moisés, ou como Jesus, ou como Paulo, ou como os doutores da igreja. Sei o que digo, já o vi antes. Ele se sujeitará a usar aquelas palavras ignóbeis da tradição cristã, e consumirá tempo precioso se esforçando para obter um ponto de contato com o evangelho; aceitará em si as rugas e o fedor de alguns dogmas, e finalmente acreditará ser a própria re-encarnação de Moisés, o novo Moisés, com a mesma cara de antes – “mas com um melhor coração, enfim!” E tudo isso para esmolar a atenção complacente deste mundo podre. Pobres diabos-gagos. Seu último estado tornou-se pior que o primeiro.

“Misticismo semântico”: expressão Schaefferiana, para designar a ilusão de que o mero uso da linguagem cristã tornará o nosso discurso cristão, mesmo que sua carga semântica seja fruto de nossa própria imaginação filosófica. Como se as palavras dessem a luz ao sentido, e não o sentido às palavras; como se as meras palavras pudessem criar espírito e realidade, tal qual um “pó de pirlimpimpim” teológico.

"Misticismo Semântico": expressão especialmente desprezada e, até mesmo, odiada, capaz de fazer queimar o ventre de alguns teólogos. Desprezada, como não? Que pode um Schaeffer contra um Schleiermacher, ou um Tillich, ou um Bultmann, ou um Ricoeur, ou um Queiruga, ou um Rubem Alves, ou uma dessas Emílias que infestam os seminários teológicos? Que audácia! Sem dúvida, admito, precisamos submeter essa expressão a um tratamento mais sofisticado. Pobre Schaeffer; era um evangelista, não um filósofo, e muito menos um especialista em filosofia da linguagem religiosa.

Mas vou eu em sua defesa: ele conhecia o diabo o suficiente para enxergar o vazio sem fundo dentro dos olhos de algumas carcaças teológicas contemporâneas. Olhos tão parecidos com a velha tradição, tão brilhosamente evangélicos, tão impressionantemente consistentes mas... tão ocos de significado evangélico. Ou melhor, olhos tão cheios de outros significados, brilhando com luzes infernais, de sentidos infernais, quentes e vermelhos de revolta contra Deus.

Quem tem olhos para ver, veja. Isso não é coisa de somenos. Há crentes que apontam o poder do leão, e respondem tranqüilos: “o evangelho não precisa de defesa; só precisamos mantê-lo livre.” Pura inocência. Ainda mais com essa estratégia perversa de roubar o corpo dos outros. Como saber se aquele leão também é oco? Ou se está cheio com o pai da mentira?

Por isso Miguel descerá do céu, de novo, e de novo, e de novo, e contenderá pelos corpos de Deus, mesmo que sejam corpos mortos. E o diabo contenderá também; e os simples ficarão horrorizados: “porque tanta disputa em torno de um corpo? Porque tantas lágrimas e violências para guardar essas formas mortas, se o que importa é o espírito?”

Sim, o que, afinal, se pode fazer com esses ossos secos e empoeirados? Porquê submeter-se a horas, dias, e anos, de análise conceitual e reflexão, para demonstrar que a carga semântica de um certo discurso teológico é, finalmente, uma corrupção enganosa da verdade, do sentido que o evangelho nos trouxe? Porquê defender com unhas, dentes e mentes, o teísmo clássico, ou as duas naturezas de Cristo, ou sua unidade pessoal, ou a universalidade do pecado, ou a ressurreição literal dos mortos, ou a expiação vicária, e todas essas velharias dogmáticas?

Deus sabe o porquê. Deus e seus anjos o sabem, sim, mas principalmente, o diabo.

Convoca pois, o Senhor, anjos, para descerem de suas nuvens de apatia e desembarcar ali, onde um velho corpo é possuído, e dar luta ao pai da mentira. Quando aprouver a Deus, este velho corpo será ressurreto, e seus olhos estarão cheios do Espírito Santo. E seu rosto brilhará, com ainda maior brilho, e não haverá véu que oculte sua luz.

Até lá, - que saudade! – se temos apenas estes corpos inertes de tradição religiosa lançados aí, num canto, que seja. Os anjos chamados, fiéis em busca de compreender, estarão de guarda, esperando pacientemente pela ressurreição. E nossas espadas analíticas estarão prontas contra o diabólico misticismo semântico.

15 Comments:

Blogger Solano Portela said...

Caro Guilherme:

Brilhante ensaio, aproveitando o gancho da proposição bíblica. Realemente, ela não nos diz muito, em detalhes o que foi essa batalha e qual o seu sentido último. No entanto a batalha de Satanás, pelos corpos, como receptáculos através dos quais a mente se projeta e se comunica, na existência presente, é constante e dependemos totalmente da proteção de Deus. Essa proteção é tanto para nós quanto contra aqueles que já entregaram tanto a sua mente como corpos a Satanás, especialmente os travestidos de teólogos da modernidade, com o seu destrutivo misticismo semântico.

Um abraço e parabéns,

Solano

3:34 PM
Blogger Augustus Nicodemus said...

Caro Guilherme,

Gostei muito do seu texto. Criativo, inteligente e teologicamente perspicaz. O que você escreveu reflete a realidade. Somente através do corpo de Moisés é que o diabo tem chance de tentar enganar o povo de Deus. Nossa segurança é que Deus não permitirá que os eleitos sejam enganados.

Um grande abraço,

Augustus

5:41 PM
Blogger Charles L. Grimm said...

Muito bom este texto!

Realmente, o que tem de 'Emílias' por aí... nem no sítio do pica pau amarelo! :-)

2:54 AM
Blogger Norma said...

LINDO, Guilherme! Há tempos não leio um texto que trate propriamente de teologia com tanta criatividade formal-estilística-interpretativa. Adorei de cabo a rabo. Só não gostei de uma coisinha: a Emília de Lobato não merece ser associada a essas crápulas mortos-vivos... :-)

Vou recomendar a todos! Abração!

5:59 PM
Blogger Nagel said...

Parece que o diabo encontrou o poder da síntese. Por que negar a verdade se ele pode misturá-la sutilmente coma a mentira, a ponto de confundir os mais desatentos?

"Deus", "graça", "liberdade", todas palavras roubadas e preenchidas pelas mais variadas fantasias.

Abraços.

10:16 PM
Blogger Oswaldo Viana Jr said...

Eis a passagem: (Epístola de S. Judas, Cap. único, v. 9): "...o arcanjo Miguel, quando disputava com o diabo, discutindo a respeito do corpo de Moisés, não se atreveu a pronunciar uma sentença injuriosa contra ele, mas limitou-se a dizer: O Senhor te repreenda!"

O mais poderoso anjo preferiu deixar para Deus o julgamento do diabo, não?

11:18 PM
Blogger Caio Kaiel said...

Este texto foi indicação da amiga Norma Braga, mas sua sabedoria foi indicação de Deus. Obrigado.
Quanto ao texto, tomarei cuidado com os corpos alheios.

Deus te Abençoe Irmão.
Abraço.

10:44 AM
Anonymous Anônimo said...

nesse últimos dias, temos observado muitas "baboceiras" teológicas que mais causam dissensão do que edificação em Deus. Sou cristão a mais de 5 anos e pela graça de Deus recebi a tarefa de ministrar aulas na escola dominical e enfatizo muito os fundamentos sagrado da bíblia com meus aluno e não percam tempo com aquilo que não fundamentará a vida deles. Oremos para que Deus levante homens e mulheres comprimossados com a ortodoxia Bíblica a fim de sermos cooperadores de Senhor.

10:00 AM
Blogger Lou said...

Sua premissa teológica é o da salvação para alguns (os tais escolhidos). Com essa base, você desenvolveu um lindo texto. Interessante e cativante. Caso o Salvador tenha intenções maiores que as tuas (salvar toda a corja de pecadores, os maus pregadores e escritores entre eles, por exemplo) você poderá conviver com eles na vida eterna. Ore para que sua teologia seja a melhor, caso contrário, você correrá o risco de ter que servir a mesa onde esses hereges e ladrões do corpo de Moisés sentar-se-ão.

12:39 PM
Blogger Rev. Jonathan said...

Maravilhoso texto!
Parabéns!
Nao sei o que mais dizer agora...
Deus te abencoe Guilherme!

12:00 AM
Blogger Mauro Meister said...

Guilherme,

Bem atrasado, vi seu post. É isto mesmo... temos que lutar pela fé contra o misticismo semântico que invade nossas escolas teológicas e sites que ainda insistem em se chamar de evangélicos.

Vc deve lembrar que é que dizia ser 'a metamorfose ambulante'... antigo professor seu! Ele também dizia que era necessário 'defender-se dos defensores de Deus'.

abs
Mauro

8:50 PM
Blogger Allan Ribeiro said...

Hmmmmmm... um pensamento que faria muito sentido se em outros locais da Bíblia se relatasse a tentativa do rapto por Satanás de outros corpos (por que não o de Abraão, ou de Adão?).

Creio de outra forma:
Elias não morreu. Moisés morreu, mas o seu corpo foi disputado por um anjo. Os dois aparecem juntos a Jesus, Pedro, Tiago e João no monte. Depois, no início do livro de Atos, aparecem dois varões (não anjos, mas homens) e dizem aos seguidores de Jesus que Ele havia subido ao Céu para retornar da mesma maneira. No fim, em Apocalipse, duas testemunhas: elas poderão fazer fogo sair de suas bocas e impedir a chuva na terra por três anos e meio (quem fez isso em vida?!). Também serão capazes de converter água em sangue e ferir a terra com pragas (novamente, quem fez isso em vida?).

Tire suas próprias conclusões, como eu tirei as minhas. A Bíblia é um livro com uma estrutura fantasticamente interconectada e nada está ali por acaso. Estes pensamentos não são originalmente meus, mas eu os analisei muito e creio que são assim.

Mantenho um blog sobre apologética e filosofia. Gostaria muito se o irmão pudesse visitar e divulgar. O endereço é equipandoossantos.blogspot.com .

Abraços fraternos,

Allan Ribeiro

6:53 PM
Blogger Guilherme Carvalho said...

Caros amigos,

agradeço os comentários positivos - especialmente os da Norma - é que seus olhos são agudos, como se sabe!

Gostaria apenas de esclarecer ao Lou que meu texto não tem a intenção de dizer algo sobre o destino eterno de fulano ou beltrano, nem de falar de predestinação (embora eu seja mesmo um calvinista). Estou falando de idéias, e de seu significado religioso. Falando polemicamente, mas é isso.

Quanto ao Allan: é uma pena que vc não tenha captado a força do texto. Eu quis produzir uma impressão estética para reforçar uma crítica metodológica da teologia contemporânea. Me desculpe, mas o destino do corpo de Moisés não interessava, enfim, para a minha discussão...

abraços,

Guilherme

8:27 AM
Anonymous ailton said...

na minha opinião, satanas queria induzir o povo de deus a adorar o corpo de (moshe) moises, para desviar toda atenção de deus. sabemos que o intuito do diabo é fazer que o foco da adoração seja para ele.sabemos tb que o seu dia está chegando e o lago de fogo ardente está preparado para ele.que o nome do senhor de israel seja louvado em toda terra.amem

2:26 PM
Anonymous ailton said...

parabens pelo seo blog, e que deus lhe abençõe em nome de jesus.

2:28 PM

sexta-feira, 7 de julho de 2006

Sobre a Natureza da Fé

Os últimos meses me trouxeram algumas oportunidades muito interessantes de discutir o conceito de "Fé", a partir da filosofia reformacional. No início do ano eu apresentei uma discussão metodológica para o meu professor de Sociologia das Organizações Religiosas, o Dr. Leonildo Silveira Campos, em torno da possibilidade de se usar a fé como princípio explanatório associado à dinâmica social. Usei, na oportunidade, um pouco de Dooyeweerd, Peter Berger e uma obra interessantíssima do filósofo judeu Nathan Rotenstreich: "On Faith" (Chigaco University Press). Uma espécie de fenomenologia da fé.

No 12 Encontro da Sociedade Paul Tillich, em Maio, eu apresentei uma discussão crítica sobre o conceito de Fé de Tillich, que foi publicada agora, na CORRELATIO 9 (a revista da sociedade Paul Tillich), com o título "Sobre a Definição de Fé em Paul Tillich". Publiquei também uma resenha do livro de Rotenstreich, intitulada "As Estruturas Universais do Ato de Fé" (depois fiquei pensando: que título pretensioso, hehehe! Mas, na verdade, é isso mesmo o que Rotenstreich tenta fazer...).

Nesta primeira semana de Julho eu apresentei dois trabalhos no congresso da ALER, em São Paulo: "A Relevância do Teísmo Cristão para a Ciência no Pensamento de Roy Clouser", e "O Conceito de Crença Religiosa em Roy Clouser: Algumas Implicações para o Estudo da Religião". Nesta última eu fiz uma ponte entre Clouser e o trabalho sobre sociologia das organizações, que citei há pouco.

Numa conversa posterior o Dr. Steven Engler, coordenador da mesa, percebeu a conexão da proposta com Tillich - na verdade, Clouser foi aluno de Tillich! Uma curiosa proximidade com o pensamento neocalvinista... Opinou que introduzir o tema da fé e criticar o reducionismo na ciência seria "teologia disfarçada"! Eu retruquei que, pelo contrário, não era disfarçada, mas explícita, e que o problema era o disfarce dos pressupostos religiosos do "estudo científico da religião", que ficam sempre mantidos no escuro. Ele não concordou, obviamente, mas admitiu que seria uma metodologia limitada, mas viável. Foi uma excelente experiência de comunicação intelectual.

Estou aberto a ouvir as impressões daqueles que estiverem dispostos, ou puderem ler os artigos!