Rm 1.21,23
Sim vou lhes dizer.
Sem grandes pretensões teológicas, ou profundas explanações.
Certo, vou pintar uma caricatura. Ser caricaturado é geralmente uma experiência desagradável. Eu já fui caricaturado. Uma vez dois alunos desaforados fizeram-me uma ótima caricatura, com foco especial em meu abdômem, que me custou meia hora de aula.
Enfim, caricaturas têm sua utilidade, quando não estão meramente desviando a nossa atenção para o que é menos importante (como o meu abdômen, no meio de uma exposição sobre a história do Novo Testamento). Os amigos me desculpem, se a minha caricatura parecer demasiado caricatural. Ademais, nunca fui bom desenhista.
Faço apenas uma ressalva, quanto à minha caracterização dessa doutrina: é que, enfim, toda teologia atinge a sua forma popular e, a forma popular do teísmo aberto não será algo muito diferente da minha caricatura. Talvez porque a forma popular é, em si mesma, uma caricatura.
A característica central do Teísmo Aberto é a afirmação coerente da liberdade ontológica da criação em relação a Deus. Isto é, a autodeterminação proporcional das criaturas, culminando na liberdade criativa do homem. Sobre esta base se assenta uma revisão da doutrina de Deus, segundo a qual a sua relação com as criaturas não é de soberania e controle absoluto, mas de diálogo e negociação. Deus se relativiza para abrir espaço para as criaturas; se temporaliza de modo que o futuro passa a ser uma construção comum Dele mesmo com as suas criaturas.
Daí dizer-se que Deus “não sabe o futuro”, no Teísmo Aberto. É que ele não pode saber algo cuja existência depende da vontade de suas criaturas, em cuja liberdade Ele não pode penetrar, e cujas decisões Ele não pode prever. O presente, no Teísmo Aberto – como no Teísmo do Processo, seu irmão “liberal” – é fruto da conjunção aleatória de diversas vontades, sob a supervisão amorosa e jamais impositiva de um Deus que luta para “não deixar a peteca cair”.
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Andrew Fellows, agora meu vizinho duas casas abaixo em L’Abri é um sujeito cativante. Alessandra comentou com uma ponta de inveja que até o seu cachorro é feliz. Mas não se tratava do cachorro, eu sei (se bem que uma vez eu tive inveja de uma formiga, por não ser ela capaz de partilhar de meus sofrimentos intelectuais).
Era o momento: o sol, a família, a música – ah, a música! Ella Fitzgerald, numa brilhante manhã de Páscoa, enquanto Andrew saía de sua sala exclamando com a alegria estampada nas faces: This is ressurrection music, yes? This is!
Mas todo o momento era ressurreição. Pela primeira vez desde que chegamos na Inglaterra sentimos o calor do sol na pele. O céu estava aberto, e a primavera começara a revelar suas cores no maravilhoso jardim que se estende bem diante da varanda dos Fellows – a varanda de onde Andrew anunciou a “música da ressurreição”. De fato, a suavidade da voz e a doçura de uma harmonia previsível, mas, absolutamente feliz, como que celebravam artificialmente o que nos era dado naturalmente;
Eis, então, que uma maravilhosa inversão de sentido se consumava bem diante de nossos olhos e ouvidos; e todos sentimo-la: era como se toda aquela beleza, tranqüilidade e harmonia houvesse sido criada para aquele momento; como se a música, as conversas, as pessoas – o elemento humano naquele instante – fossem a coroação e a plenitude do que estava ali. Não, mais do que isso: é como se o momento em si, reunindo natureza e personalidade numa totalidade de sentido feliz, fosse a coroação de tudo. Aquele momento foi uma dádiva.
Perdoem-me. A poluição humanista pesa em minha língua. É claro que não houve nenhuma inversão de sentido, exceto aquela que nos fez destruir a unidade do dom divino, aquela maldita e hipócrita “laicidade”ocidental. Então aquele domingo foi uma dupla dádiva. A dádiva do sentido, e a dádiva de percebê-lo.
“Guilherme!” “Não passa uma manhã, em todos os anos em que temos vivido aqui, na qual eu e Helen não agradeçamos de todo o coração por viver neste lugar, e ver esta paisagem maravilhosa” – Foi o que Andrew me disse naquele almoço, entre uma batata e outra.
Poucos minutos antes havíamos trocado alguns pareceres sobre o Teísmo Aberto, e o ponto emergiu novamente. “Andrew” – eu respondi – “você sabe que eu sou um calvinista. Para mim Deus está diretamente envolvido em todos os acontecimentos, seja na natureza, na história, ou nas escolhas individuais. Isso significa que não posso ver este momento senão como um dom. Cada flor, cada raio de sol; cada pessoa, cada pássaro; esta casa, esta varanda, este lago; Ella Fitzgerald, e estas lindas flores amarelas bem diante de nós, e esta manhã de ressurreição. Um defensor do Teísmo Aberto não pode crer nisso coerentemente, porque em seu mundo o presente é o resultado misto da vontade divina e da liberdade das criaturas, de um modo imprevisível para o próprio Deus. Assim, um momento maravilhoso não é uma dádiva; é uma conjunção casual de escolhas diferentes e independentes. Um milagre da sorte, à qual o próprio Deus deverá oferecer ações de graças”.
Ao que Andrew concordou prontamente. Se há alguma coisa bem definida na sua teologia, ao que eu pude compreender, é a crença, a confissão, e prática de agradecer a Deus por todas as coisas.
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Vou-lhes dizer o que há de errado com o Teísmo Aberto.
Sem me desculpar por minha caricatura, sem arrazoado rigoroso, sem densidade maior do que a do ar, quero dizer algo que sinto vital. Como o ar mesmo. Tão rarefeito que não se pode apanhar com as mãos, mas tão delicioso quando o inspiramos puro...
É a pura verdade. O defensor do Teísmo Aberto não pode realmente agradecer a Deus. Pode, sim, agradecer pela vida –
O mundo do Teísta Aberto é um mundo sinérgico, em última instância. Um mundo fora de controle e sem sentido supremo; um mundo no qual podemos dizer com satisfação, ao oponente ateu, que “Deus não tem nada a ver com a maldade humana, nem com os tsunami, nem com a guerra”. E ao mesmo tempo, por uma irresistível conseqüência teológica, um mundo no qual os momentos de felicidade e plenitude não podem ser atribuídos a Deus. Pois Deus é apenas uma força entre outras – a mais potente, sim, mas não a causa intencional.
Como pode ser verdade que aquele momento não foi uma dádiva divina para nós? Ella Fitzgerald, a primavera, as flores amarelas, e as batatas temperadas da Helen? O ar fresco, o sol, e max, o cão feliz? E nós, naquele momento, com aqueles sentimentos, aquelas experiências, aquelas palavras...
Vou lhes dizer:
O Teísmo Aberto é uma pintura pós moderna, um salto no escuro. Aparentemente humilde, oferecendo-nos um deusinho humilde, e um cristianismozinho humilde, tolerante, aberto. Mas seus ossos são de aço. O aço frio do humanismo secular. Da autonomia humana e do desencantamento radical da visão de mundo teísta. Uma cria abortiva da modernidade.
É mentira. Provavelmente o seja filosoficamente – talvez isso venha a ser demonstrado, ou já tenha sido demonstrado – mas com toda certeza é mentira esteticamente. É feio. É kitsch, porque é por demais bem-proporcionado. Um deusinho dos sonhos, do qual ninguém tem medo. Um deus domesticado, homem bom elevado à bilionésima potência, sem qualquer elemento aterrorizante. Uma divindade cuja graça pode me levar pra bem pertinho do céu, mas não pode me pôr lá dentro. No final, todos os que seremos salvos, o seremos graças a Deus e a nós. Lutero riria desse Deus. É Erasmiano demais para um bom protestante.
É mentira. Só pode ser mentira. Eu sei que aquele momento foi uma dádiva. Pois ele queimou em meu ventre, tanto quanto o dia da minha conversão. Cada cor, cada cheiro, cada milímetro, cada segundo, e cada ação humana, foi uma dádiva única. Por isso tudo fazia sentido. Todo aquele momento foi expressão, em sua unidade e plenitude, da beleza divina e de seu amor. Essa é a verdade deliciosa. Respire-a, sinta-a em seus pulmões!
Pois eu não vivo no mundo antropocêntrico do Teísmo Aberto. E também porque o teísta-aberto vive comigo, no mundo de Deus.
Graças a Deus! Pois todos nós vivemos no mundo real – eu e meus irmãos teístas-abertos. O mundo real, sobre o qual Deus é soberano sobre todas as coisas. O mundo no qual podemos encher a boca e exclamar,
Graças a Deus!