terça-feira, 15 de setembro de 2009

Impureza Sexual: Tem Cura?


Outro dia tive uma conversa estimulante mas também algo abaladora com um pastor, no final de uma palestra sobre educação. Na palestra eu havia mencionado um princípio do pensamento reformacional - a idéia de que não há contradições estruturais na ordem criada. Assim não há contradição essencial entre, por exemplo, a esfera da justiça e a da moral, ou entre a esfera estética e a esfera da fé, e assim por diante. Mas uma das minhas alegações fez acender luzinhas no painel dos presentes, incluindo no do amigo pastor: a de que não haveria contradição estrutural entre as esferas biológica e psíquica e a esfera moral.

Ao término da exposição ele reagiu prontamente com uma questão muitíssimo prática: a tentação sexual: "há pouco eu aconselhei um homem envolvido em adultério. O casal está aos poucos se refazendo, e a esposa está disposta a perdoar; quanto ao marido, ele deixou claro para mim que amava a sua esposa. Ele simplesmente foi fraco e caiu. Não lhe faltava amor; faltava-lhe forças para resistir à tentação sexual. Mas isso não implica em uma contradição entre o nível biológico e o nível moral?"

Sem dúvida, as impressões do pastor refletiam um lugar-comum da imaginação evangélica: a tentação seria uma fraqueza interna ao campo sexual, a ser vencida por meio de uma resistência ao desejo sexual, seja por uma intervenção diretamente biológica (arrancar os olhos, ou outra coisa, eventualmente) ou por uma equilibração psíquica. De um modo ou de outro, espera-se que o desejo sexual distorcido seja controlado. Mas se, enfim, perdemos o controle, é porque falta disciplina no trato com o desejo. Precisamos disciplinar o corpo, basicamente; dobrá-lo pela supressão do desejo.

Pois bem; essa é uma das mais falsas verdades que os cristãos gostamos de espalhar. É uma verdade, sim, que o corpo deve ser disciplinado, e o desejo controlado; não é o "domínio próprio" um fruto do Espírito? Entretanto, é uma baita falsidade que possamos controlar os desejos assim mecanicamente, ou mesmo "cirurgicamente".

Imagine o mundo sem o pecado

Façamos alguns exercícios de imaginação cristã; imaginemos o mundo sem pecado. Nesse paraíso, Adão tem desejos de todos os tipos, incluindo os desejos sexuais. Esses desejos tem uma base instintiva biopsíquica, e são acionados automaticamente por sinais óbvios: a forma do corpo da fêmea, certas cores, certos cheiros, etc. Adão está sujeito a tais estímulos exatamente como qualquer outro macho de sua espécie, sendo que sua sexualidade, nesse nível, tem forte analogia com a de outros animais.

Mas Adão não é apenas um animal, feito de pó como todos os outros. Adão é o pó com o sopro divino, é o portador da imagem de Deus. De algum modo essa imagem está impressa no mesmo pó do qual as outras criaturas foram feitas, e entre as características particulares que Adão apresenta está a sua função moral. Adão é capaz de um altruísmo perfeito, muito além do altruísmo de cães e golfinhos. Ele é capaz de amar de forma pura, reconhecendo na forma da fêmea não um corpo adequado ao acasalamento, mas a superfície material de uma pessoa; não como mero objeto, mas como evento dotado de profundidade pessoal, como um Tu que precisa ser amado incondicionalmente por meio do trato que se dispensará ao seu corpo.

Teríamos aqui uma contradição estrutural? Haveria aqui um choque da dinâmica biopsíquica contra a dinâmica moral? Penso que temos excelentes razões para crer que não; não apenas razões teológicas (tudo o que Deus criou é bom) mas também filosóficas. Vou lançar mão aqui da noção de sobredeterminação utilizada em ontologia (a teoria sobre a natureza da realidade). O conceito não é muito complicado, mas exige alguma atenção.

Sobredeterminações ontológicas

A idéia de sobredeterminação ontológica é a idéia de que a dinâmica própria de um nível superior da realidade não contradiz, mas sobredetermina a dinâmica de um nível inferior. Um exemplo clássico disso é a relação entre a dinâmica biótica seus processos químicos subjacentes. A matéria, como se sabe, se associa ou se desassocia segundo leis físico-químicas, e essas leis por si mesmas não produzem seres vivos. Por outro lado, seres vivos apresentam processos exclusivos em relação aos seres inanimados; processos como a reprodução, o metabolismo, e a conservação de informação complexa.

Naturalmente, para realizar todos estes processos, os seres vivos dependem de processos físico-químicos, que seguem leis físico-químicas. Mas se as moléculas que compõe a estrutura de uma célula viva apenas obedecessem a leis físico-químicas, ela se desfaria. As moléculas da célula obedecem às leis físico-químicas dentro de restrições e especificações impostas pela dinâmica biológica do organismo, segundo modos absolutamente improváveis, de um ponto de vista puramente químico. Quando as moléculas da célula seguem apenas as leis físico-químicas, sem nenhum controle biótico, ela se desfaz - porque, obviamente, ela está morta. Dizemos, portanto, que há na célula uma sobredeterminação das leis bióticas sobre as leis físicas.

A sobredeterminação moral

Ora, o mesmo vale para outros níveis da realidade. Há uma sobredeterminação psíquica sobre os processos biológicos do ser humano; e uma sobredeterminação sociológica sobre processos psíquicos; e no final da escala, uma sobredeterminação religiosa e moral sobre todos os níveis estruturais do ser humano. As normas de um nível superior de função humana não contradizem as normas do nível inferior, mas lhe dão formas particulares, habilitando-as a existirem no nível superior. Pense nas moléculas da célula: pela "obediência" às leis bióticas, elas deixam de ser apenas "matéria", e se tornam parte de um ser vivo.

Ora, o que queremos dizer com isso é que é preciso ser um animal para ser um homem; no entanto essa é uma condição "necessária mas não suficiente". A vontade moral e a capacidade humana de amar opera por meio de sua estrutura sexual, mas a transcende, elevando o corpo do homem à condição de espírito, de pessoa. Mas assim como a célula pode morrer entregando suas moléculas às leis brutas do mundo físico-químico, o homem pode morrer moralmente entregando o seu corpo aos estímulos biopsíquicos. O humano no homem pode ser negado e perdido por falta de vontade.

Onde se localiza, então, a falha da impureza sexual? Não no nível sexual, seja em seus aspecto biológico ou psíquico, mas no nível moral. Quando pecamos por impureza sexual, não pecamos por excesso de sexualidade, por excesso de desejo sexual, ou por excesso de estímulo sexual (primariamente falando), mas por falta, por ausência. E aqui estamos simplesmente sendo Agostinianos: o pecado é a privação do bem. O problema da impureza é a ausência moral, não o excesso sexual.

Um Truísmo?

Estaríamos nós dizendo o óbvio? Sim e não. Sim porque isso é simplesmente o que as Escrituras e a tradição ensinam. Não porque isso não é de modo algum a teologia moral popular no meio cristão. Pensemos na conversa com o pastor, que mencionamos acima. Ele afirmou com grande convicção que o marido traidor, no fundo, amava a sua esposa. Ele caiu por ser fraco, não por falhar no amor.

À luz do que acabamos de considerar, no entanto, eu diria que não. Com certeza, o marido traidor amava a sua esposa; mas ele não a amava o suficiente. Na verdade, ele não caiu por fraqueza sexual (ou excesso de desejo sexual), mas por falta de amor. Não foi isso o que nos disse o Apóstolo? "O amor não faz mal ao próximo". Jesus não caiu e não cairia nessa tentação, não porque não tivesse os mesmos desejos sexuais, mas porque ele saberia olhar para cada pessoa envolvida com amor de verdade.

Sejamos específicos: aquele que adultera deixa de amar à sua esposa e de considerá-la como pessoa de valor infinito. E deixa também de amar à sua "amante", tratando-a egoisticamente. Aquele que procura a prostituição, seja ela real ou virtual, não ama aqueles que estão escravizados ao mercado sexual, e tampouco ama a si mesmo; pois se sujeita a ser manipulado e explorado por indivíduos que não tem um pingo de respeito ou preocupação com o seu destino, desde que esvaziem os seus bolsos.

De modo algum eu pretendo dizer com este argumento que não exista o vício sexual; mas sustento que até mesmo o vício tem os seus começos na falta de amor genuíno pelo outro. Todo aquele que sofre com a impureza sexual deve saber, e dizer para si mesmo claramente, que ele não é um pobre coitado, aprisionado por impulsos sexuais e por uma dinâmica biopsíquica ultimamente má inventada por um Criador maldoso. Mil vezes não. A concupiscência existe, sim; mas é uma erva danina. Ela só cresce quando o amor está ausente. E quando ele está presente, alguma coisa forçosamente mudará. É por isso que Santo Agostinho pôde declarar com tanta confiança: "ama e faze o que quiseres".

Problemas oftalmológicos

De acordo com Jesus, a impureza é uma doença dos olhos, de certo modo; um problema oftalmológico, mas altamente infeccioso, a ponto de ele receitar a amputação: "se o teu olho de faz tropeçar, arranca-o". Mas Jesus sabia o que dizia. Ele deixou claro que o que contamina o homem é o que sai do seu coração, não o que entra pela sua boca. A doutrina da "amputação" é uma referência metafórica à mudança dos olhos.

O ser humano tem sérios problemas com os olhos. E eu quero chamar a atenção dos meus companheiros, os homens. Recentemente recebeu alguma cobertura o resultado de uma pesquisa feita na universidade de Princeton, sobre os padrões de resposta neurológica de homens diante de imagens de mulheres. O que Susan Fiske, a diretora da pesquisa descobriu, é que as imagens de mulheres com teor erótico ou sensual, e especialmente as imagens de partes específicas do corpo sem a revelação da face, despertam as mesmas áreas do cérebro masculino tipicamente associadas ao uso de ferramentas e objetos inanimados, ao mesmo tempo em que desativam as partes associadas às relações sociais.

Ou seja, de algum modo a nossa sociedade desenvolveu uma forma de desassociar o interesse sexual da sensibilidade moral a partir da nossa forma de olhar as mulheres. Fomos literalmente submetidos a um maciço treinamento pavloviano para nos acostumarmos a olhar mulheres como objetos, como superfícies materiais sem profundidade pessoal. Nas palavras de Susan Fiske, "eles não as estão tratando como seres humanos tridimensionais".

Isso é o que acontece quando suprimimos a nossa intuição moral e deixamos de ver pessoas diante de nós. Restam apenas corpos impessoais.

Olhar com Amor

Como, então, o amor se manifesta, no que tange à impureza sexual? De novo quero apelar para Paulo: "Não repreendas ao homem idoso; antes, exorta-o como a pai; aos moços, como a irmãos; às mulheres idosas, como a mães; às moças, como a irmãs, com toda a pureza." (1Tm 5.1).

Paulo sabia muito bem o que estava dizendo. Ninguém pode alegar (a não ser, é claro, em casos evidentemente patológicos) que não sabe o que significa olhar para uma mulher linda e não cobiçar. Basta ter mãe ou irmã - ou filha, eu diria. Todos nós sabemos muito bem o que é olhar alguém que, biologicamente falando, poderia ser apenas um objeto sexual, mas simplesmente não sentir interesse sexual por causa do amor, de uma relação de respeito e cuidado em que o outro é verdadeiramente reconhecido como pessoa e valorizado incondicionalmente. O amor faz a gente ter um olhar diferente.

Como é que o jovem Timóteo olharia para uma moça com "toda a pureza"? Olhando-a como se fosse uma irmã de sangue. Paulo nos convida aqui a usar a imaginação, e considerar as moças como se fossem irmãs. Ou seja, tomando-as como pessoas, não como objetos. Isso demandará uma revolução, nos dias de hoje, em que somos ensinados a enxergar os corpos humanos como bonecos de plástico. Jovens e adultos, homens e mulheres, olhando para seus pares, amigos e semelhantes como pessoas - não como nacos de carne, como pernas, bundas e peitos, mas como gente, como humanos com faces, como superfícies físicas de pessoas reais.

Honestamente, preciso dizer a todos os meus companheiros pecadores que não há uma cura completa para essas doenças do olhar, até que a nossa ressurreição seja consumada. Mas há o que Schaeffer chamava de "cura substancial". A impureza no olhar tem cura de verdade, embora seja um caminho difícil; pois amar de verdade é ainda mais difícil que reprimir desejos.

Mas, enfim, não há vitória na "pureza" obtida à custa de repressão do desejo. É inútil congelar uma célula morta para que ela não se desfaça. A única solução genuína e de longo prazo para o problema da impureza sexual é ter amor nos olhos.

Parodiando Santo Agostinho, eu diria: "ama e olha como quiseres".

11 comentários:

Jorge Bessa disse...

Excelente post Guilherme! Especialmente no que tange às “Sobredeterminações Ontológicas” e a forma como você disseca o assunto. É fundamental que entendamos a hierarquia dos processos para que não passemos a vida combatendo sintomas e negligenciado suas causas ou origens. Muito bom!

Guilherme disse...

Muito bom! Sem aquela velha baboseira "behaviourista" de sempre! Permita-me seguir seu blog! Abraço.

@igorpensar disse...

Guilherme, uma pergunta: Como você vê a relação sexualidade-cultura? Sabe-se que diferente dos animais, no aspecto biológico, não fazemos sexo só quando as fêmeas estão no período fértil. A explicação para isso, é que a sexualidade entre os humanos tem um apelo simbólico (cultural) associado aos impulsos biológicos. O que você pensa sobre isso?

JT disse...

Excelente texto, Guilherme! Gostei da exposição! Tô reproduzindo parte dele no Mural na Net (com chamada pro texto completo)!

Agora, uma pequena observação. No 8º parágrafo, no trecho "(...) entre a dinâmica biótica seus processos químicos subjacentes" tá faltando algum termo após a palavra "biótica", tá não? Também notei isso na reprodução lá no site da Editora Ultimato.

M. V. M. de Arruda. disse...

Guilherme,
Saúde.
Mandei um e-mail para o endereço: guilherme.religion@gmail.com.
Aguardo ansiosamente vossa resposta.
Um abraço fraterno,
Marcus.

Patrícia disse...

Excelente o texto. Converso com muitas pessoas e principalmente homens cristãos que enfrentam muitas dificuldades nessa área. Alguns chegam a falar que a masturbação deve acontecer, pois, é algo normal e caso não façãm, podem ter problemas para engravidar a futura esposa. Vejo que, muitas vezes, falam nas igrejas de pecado, principalmente aqueles que se referem a sexualidade de uma maneira camuflada. Falam que é pecado mas não expõem, não vão fundo na questão. Penso que tem que ser falado mais abertamente, entre os homens (Pastor e ovelha). Muitos cometem esse pecado e muitos estão quase que "enterrados" neles sem ter com que conversar. Essa é uma questão polêmica, que deve ser mais falada no meio cristão.

Hermes C. Fernandes disse...

Parabéns pelo belo trabalho no blog.


Aproveito para lhe convidar a conhecer meu blog, e se desejar segui-lo também, será uma honra.

Seus comentários também serão muito bem-vindos.

www.hermesfernandes.blogspot.com

Te espero lá!

Alex Malta Raposo disse...

Querido irmão,

Parabéns pelo blog.

Gostei muito e, com certeza, estarei sempre visitando.

Forte abraço.

alexmaltta.blogspot.com
Evangelho da Graça

Anônimo disse...

Olá, botei um link pro seu blog e os créditos da sua postagem no meu blog. Se tiver algum problema, me dá um toque q eu tiro!

Muito bom o texto, um dos melhores q já li sobre o assunto. Se cuida!

Guilherme de Carvalho disse...

Puxa, gente, quero apenas pedir desculpas por não ter respondido aos comentários de todos! Minha vida virtual está longe de se tornar real (rsrsrs).

Agradeço de todo modo pelas boas palavras. E espero no futuro ter condições de ser mais presente.

abr,

Guilherme

Anônimo disse...

Meu irmão, parabéns sempre pelos vossos artigos. Temos sido abençoados pela sua vida e ministério de reflexão.