terça-feira, 29 de março de 2011

Kierkegaard e Wittgenstein

A propósito do nosso próximo retiro L'Abri, sobre Kierkegaard...

segue um esboço de artigo, ainda em construção. Aberto a observações críticas!

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Lendo Kierkegaard “Resolutamente”: considerações sobre a aproximação entre Kierkegaard e o Tractatus Logico-Philosophicus na “New Wittgenstein School”

O presente artigo pretende expor e discutir brevemente a leitura do pseudônimo Kierkegaardiano Johannes Climacus, feita por James Conant e Stephen Mulhall, defensores da leitura “resoluta” do Tractatus Logico-Philosophicus. Depois de definir a “leitura resoluta” (I), vamos expor as interpretações de Conant e Mulhall (II), para os quais Kierkegaard pretenderia, por meio do discurso contraditório do pseudônimo Climacus, dissolver a especulação teológica e desmascarar a ilusão estética dos leitores. Essa leitura é empregada como suporte para a compreensão “resoluta” de Wittgenstein. Em conclusão (III) vamos indicar dois obstáculos à apropriação de Kierkegaard pela “leitura resoluta”.

I

Entre as leituras do Tractatus destaca-se aquela associada aos nomes de Cora Diamond, Stanley Cavell e James F. Conant, entre outros, conhecida como “leitura resoluta”, um aspecto da assim-chamada abordagem do “Novo Wittgenstein” (New Wittgenstein). Em um dos artigos mais importantes dessa nova leitura, Cora Diamond refuta as interpretações do Tractatus que veem nele a defesa de distinções filosoficamente válidas entre o que pode ser dito e o que só pode ser mostrado. O Tractatus seria literalmente[1] a escada de afirmações sem sentido a ser jogada fora pelos que compreendem o filósofo (§6.54)[2]. O objetivo de Wittgenstein seria o de abandonar completamente a concepção de filosofia como postulação e discussão doutrinária sobre o mundo, à maneira da ciência[3], e até mesmo tentar “ocupar uma posição na qual estamos fora da lógica”[4]. Seu método seria mostrar a confusão inerente ao esforço de capturar qualquer “essência” do real à parte das características lógicas do discurso[5], ou de pensar “qualquer parte da lógica como externa àquilo do que estamos falando”[6], dispersando através disso a totalidade da ilusão filosófica.

II

Em um artigo de 1995[7], James Conant propôs-se a reforçar a “leitura resoluta” de Wittgenstein por meio de uma releitura comparativa com obra de Soren Kierkegaard. A tese de Conant é a de que o Tractatus Logico-Philosophicus e o Concluding Unscientific Postscript[8] Ambos teriam a intenção de desmascarar os esforços por explicar o ético e o religioso em termos que os colocam além dos limites da compreensão humana, e que caracteriza tais esforços como ilusões.[9] deveriam ser lidos como tendo objetivos e métodos semelhantes: fornecer ao leitor uma espécie de “espelho” autocrítico, ajudando-o a subir por uma “escada” que seria dispensada ao final do processo.

Em sua discussão de Kierkegaard Conant pontua a necessidade de levar em consideração as instruções de leitura fornecidas pelo próprio filósofo. Ora, Kierkegaard deixa claro que seus pseudônimos não representam em nenhum momento o seu próprio pensamento, e que Johannes Climacus (juntamente com toda a pseudonímia) pertence ao conjunto de sua obra estética. Isso reforça a tensão no Postscript (e nas Migalhas) entre o conteúdo religioso, com sua exigência de resposta decisiva, e a forma desinteressada, estética da abordagem de Clímacus.[10] Aparentemente Johannes Climacus seria responsável por uma espécie de contradição performativa:[11] um não-cristão declarado, tentando compreender o cristianismo de um ponto de vista estético. A intenção de Kierkegaard ao inventar Climacus seria, basicamente, explicitar a confusão de categorias implicada no esforço da filosofia moderna de tratar objetivamente (desinteressadamente) o que pertence ao campo subjetivo, e que só pode ter sentido a partir da decisão religiosa.

O tratamento dado por Conant a Wittgenstein segue em acordo substancial com a leitura de Cora Diamond: a intenção básica do austríaco seria a abolição da filosofia como projeto doutrinal e teórico, em favor da filosofia como processo de elucidação.[12] Sobre esta base Conant estabelecerá os paralelos entre Kierkegaard e Wittgenstein.

Assim, (1) todo o esforço de discursar filosoficamente sobre a natureza do cristianismo, e o próprio uso da linguagem cristã sem o envolvimento existencial correspondente, seriam parte de uma ilusão estética na qual o não-cristão acredita-se cristão (Kierkegaard); e a tentativa de estabelecer teses filosóficas seria uma ilusão dogmática (Wittgenstein). (2) Para livrar o leitor da ilusão, será preciso usar o método da comunicação indireta, a “enganação benigna”, pondo-se na pele do esteta e mostrando a falta de sentido de sua aproximação desinteressada da religião (Kierkegaard, por meio de Climacus)[13]; para livrar o leitor do dogmatismo, será preciso pôr um “espelho” diante dele;[14] construir um discurso aparentemente significativo sobre a natureza do mundo e a natureza da lógica, mostrando a vacuidade das perguntas filosóficas que desejam dar conteúdo doutrinal a tais “naturezas” (Wittgenstein). (3) Para chegar à condição religiosa e à decisão ética o indivíduo deverá pôr de lado “Climacus” (literalmente, “escada”)[15][16]; para mover-se em direção à ética o leitor deve superar o debate doutrinal em filosofia, compreendendo a sua falta de sentido e jogando fora a “escada” do Tractatus, rumo a uma concepção puramente elucidativa e assim prática da filosofia (Wittgenstein).[17] e abandonar toda a tentativa de debater filosoficamente a crença religiosa, em favor de uma decisão ética (Kierkegaard)

Conant, embora com um olho em toda a Kierkegaardianna, pôs sua lanterna sobre o Postscript; mas foi Stephen Mulhall quem se encarregou de estender a abordagem “resoluta” de Kierkegaard até às Migalhas Filosóficas em 1999.[18] Mulhall começa o seu tratamento deixando claro que as Migalhas são o coração do projeto de Climacus, e que nela a dialética tem a centralidade. E procede a uma exposição do argumento das Migalhas, mostrando como Climacus passa de uma aparentemente válida experimentação teórica sobre o que seria um aprendizado não-socrático da verdade, na qual ele “reinventa” as noções cristãs de revelação, encarnação, salvação e renascimento, para uma especulação contraditória sobre o paradoxo de tentar pensar o impensável, o que está além dos limites da razão.

Segundo a leitura de Mulhall, a intenção de Kierkegaard seria mostrar que a crítica anti socrática exemplifica a mesma inabilidade do socrático de pensar o impensável, revelada na insistência sobre o paradoxo da encarnação. Essa fixação no paradoxo seria a manifestação do caráter estético de Climacus, e da absoluta falta de sentido de perder-se em discussões teóricas distanciadas sobre a religião, ao invés tomar-se uma decisão religiosa. Climacus aparece enfim como aquele que, “ao invés de se relacionar com o deus”, se alegra em relacionar-se “com uma ideia abstrata de Deus”.[19] O texto de Climacus seria assim um “espelho” para os leitores.[20]

No tocante ao que chamamos de “leitura resoluta” de Climacus, podemos dizer que, tendo em vista não apenas os paralelos formais e referências indiretas, mas a confissão de Wittgenstein sobre a influência de Kierkegaard, uma demonstração de que este pretende dissolver a especulação teológica em nome da decisão ético-religiosa funcionaria como o suporte conveniente à leitura resoluta de Wittgenstein. Assim Kierkegaard é lido como parte de uma tradição que começa com Lessing e vai até Wittgenstein, e que procura mostrar a natureza ilusória do debate sobre doutrinas filosóficas (exemplificada mas Migalhas pelo “paradoxo”)[21]. Assim, para Conant e Mulhall, a saída do paradoxo se encontra na indecisão dissolução da especulação filosófica. cujo fundamento é a dissolução da especulação filosófica.

III

A leitura “resoluta” de Kierkegaard, à imagem da leitura “resoluta” de Wittgenstein, é certamente plausível prima facie; mas induz à suspeita, por sua aproximação algo instrumental de Kierkegaard. De fato ela apresenta pelo menos dois problemas que mereceriam consideração posterior. Em primeiro lugar, Mulhall vê o paradoxo no cap. 3 das Migalhas como uma transgressão de limites “transcendentais” do pensar, que paralisa qualquer pensamento – inclusive aquele supostamente não-socrático, mostrando assim a necessidade de dissolver toda especulação filosófica sobre a religião; entretanto, o “impensável” nas Migalhas não é inefável em um sentido Kantiano ou Wittgensteiniano; parece ser, antes, o que não pode ser derivado de uma lógica da história; é a dádiva, que é certamente pensável e dizível a partir do instante em que é recebida, não implicando a transgressão da razão per se. O paradoxo ocorre na existência[22]. Nesse caso, a ideia de paradoxo nas Migalhas não se prestaria tão facilmente à justificação da concepção da filosofia de Wittgenstein defendida pela leitura resoluta. e consiste do instante

De igual modo, Conant se esforça por deixar claro que Climacus não representa a mente de Kierkegaard, mas a de um esteta tentando manipular um problema religioso. Entretanto, ele emprega a interpretação de Lessing feita por Climacus, segundo a qual aquele seria um exemplo de dissolução da polêmica teológica em lugar de uma escolha dogmática, como se fora uma expressão da postura do próprio Kierkegaard.[23] Assim este desejaria sempre dissolver a pergunta, ao invés de exigir uma escolha. Ora, com isso Conant aproxima Kierkegaard e Wittgenstein, mas aparentemente ao custo de fazer Kierkegaard à imagem de Climacus: um esteta.



[1] Diamond, Cora. “Throwing Away the Ladder: How to Read the Tractatus”. Em: The Realistic Spirit: Wittgenstein, Philosophy and the Mind. MIT Press, 1995. Capítulo 6, p. 181.

[2] Wittgenstein, L. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2008, p. 281.

[3] Ibid, p. 212.

[4] Ibid, p. 185.

[5] Ibid, p. 200.

[6] Ibid, p. 201.

[7] Conant, James F. “Putting Two and Two Together: Kierkegaard, Wittgenstein and the Point of View for Their Work as Authors”. Em: Philosophy and the Grammar of Religious Belief, ed. Timothy Tessin and Marion von der Ruhr, St. Martins Press, 1995. Capítulo 11.

[8] Ibid, p. 249. Conant inclusive justifica essa escolha pela observação histórica de que Wittgenstein expressava grande interesse pela obra de Kierkegaard. Cf. p. 304, nota 6.

[9] Ibid, p. 292.

[10] Ibid, p. 253.

[11] Ibid, p. 257.

[12] Ibid, p. 252.

[13] O significado dos conceitos só é genuinamente religioso se a vida como um tudo assume uma forma religiosa. As categorias cristãs não tem sentido religioso se empregadas em um contexto estético. Cf. ibid, p. 277.

[14] Ibid, p. 284.

[15] Ibid, p. 291.

[16] Ibid, p. 278.

[17] Ibid, p. 280.

[18] Mulhall, Stephen (New College, Oxford): “God’s Plagiarist: The Philosophical Fragments of Johannes Climacus”. Philosophical Investigations 22:1, Jan 1999. Mulhall admite explicitamente que a sua leitura das Migalhas inspirou-se nos trabalhos de James Conant. Cf. ibid, nota 1, p. 5.

[19] Ibid, p. 30.

[20] Ibid, p. 32.

[21] Conant, ibid, p. 296.

[22] Kierkegaard, Soren. Migalhas Filosóficas. Rio de Janeiro: Vozes, 1996, p. 79.

[23] Conant, ibid, p. 295-297.

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